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Cozinhando

Descongelar carne é uma desgraça pela qual ninguém no mundo deveria passar.
É uma sensação agonizante, quase de impotência. Sentir-se desolado e carente ao ver aquele lindo pedaço vermelhe permanecer parado por longos minutos.
Sentir o cheiro do bacon suavemente entrando pela sua narina esquerda, enquanto o máximo que você pode fazer é continuar observando aquela fina camada de gelo aos poucos se liquefazendo.
Enquanto escrevia isso, a cebola queimou.

Antologia do meu Mundo – Prólogo e Capítulo I

Boa tarde, senhoras e senhores.

Estou escrevendo um livro, e não sei definir seu estilo, sobre o que é ou muito menos para que serve. Se alguém descobrir, por favor me fale. No momento estou escrevendo o capítulo IV, mas resolvi divulgar o I pra saber a opnião alheia. Apenas para comentar, não tenho pretensões econômicas com tal, se tratando apenas de uma forma de reunir tudo aquilo que vivo e que me incomoda. Não faço idéia se o livro será impresso em grande escala e muito menos comercializado, escrevo por paixão, somente.

Prólogo

Fazemos parte de uma besta de metal de 3 metros de altura e nos movemos sujeitos às leis da física em direção ao nunca. O caos e a dúvida cruelmente abafados pelas pesadas gotas de chuva no vidro sempre me fazem pensar, duvidar da capacidade do mun­do em mudar. Em minhas mãos a literatura clandestina, emude­cida pela enxurrada de desespero, combate fervorosamente o reló­gio que jaz no pulso direito e acompanha o compasso da sinfonia de todos os sons, atravessando-me os sentidos, sem origem ou des­tino, apenas para acompanhar a infinita sinestesia desse momento. Sinto que posso ouvir as cores das árvores e sentir o cheiro das palavras.

A besta corre por entre as vias de concreto, rasgando o vento e o além com seu formato aerodinâmico, somos produto da era da velocidade. Ah, a cruel era da velocidade, faz de animais os menos privilegiados, bestas de capacidades limitadas, prontos para degolar e subjugar o primeiro que vos desafiar por uma ideologia que demon­stre o lado podre da natureza que aceita como própria e imutável. Prontos para rasgar não só o vento com suas navalhas, mas toda a podridão humana na busca da essência do que é ser humano.

As reluzentes paisagens ao nosso redor refletem em nos­sa retina, o brilho no olhar nos lembra de quem somos: homens comuns, heróis silenciosos. Trabalhadores, estudantes e falas­trões, recriando o mundo à nossa maneira dia-a-dia, sem ao menos saber se temos este direito. Ao som de Beethoven, os violinos acompanham a sublime viagem ao sub­mundo dos vorazes animais que nos acompanham. O mal ne­cessário para que a justiça seja feita, eles correm ao nosso lado.

Há muito uma voz em minha cabeça me faz escrever sobre tudo o que ela me conta. Não sei seu nome ou ao menos o que significa, mas me agrada o fato de estar ao meu lado. Não sou um escritor, apenas um observador. As obras que aqui estão não são de minha autoria, quem as criou foi o mundo, eu apenas as retratei.

Capítulo I : O café

São sete horas da manhã de uma sexta-feira, fecho a porta e deixo as confortáveis, acolhedoras colchas para trás. Saio e enfrento o frio e os tigres do capital. Em meu carro de classe média, ouvindo ao rádio mal sintonizado, me dirijo ao caos que logo cedo se forma no maior centro urbano do país. O clima me convida para um café.

Vinte minutos até conseguir estacionar meu carro, um local apropriado entre o escritório e a cafeteria. Após alguns anos de trabalho com arquitetura, me pergunto se a razão entre a distância do escritório ao carro e deste para a cafeteria realmente equivale à proporção áurea ou se o trabalho começa a me tomar a razão.

Bancos de madeira perfeitamente polidos e simétricos espalhados em um ambiente manipulado para fazer qualquer um fugir da realidade, mesmo mergulhado no assombroso caos da cidade grande. A caneta que carrego no bolso da camisa insiste em passar para o guardanapo toda a angústia que se pode encontrar em uma mente nômade à procura de um oásis de sanidade meio à loucura incontrolável do mundo ultramoderno. Oásis de sanidade. Expressão engraçada.

Uma xícara de café expresso com chantilly, um sachê de açúcar e um pão de queijo recém saído do forno. O aroma me entorpece. Procuro ignorar as conversas, ainda é muito cedo para perder minha esperança no mundo hoje. A televisão me chama a atenção com seu apelo jornalístico às pequenas notícias, que na metálica voz do âncora vêm trazer o desconforto para tão bela manhã.

– “Sete e trinta e quatro da manhã, horário de Brasília, Bom Dia. Um garoto desaparecido foi encontrado em um quarto escuro da casa de seu vizinho, espalhando tinta pelas paredes com as mãos nuas. O garoto foi encaminhado para acompanhamento psicológico e os pais enviados ao conselho tutelar. Os vizinhos afirmam que não sabiam de nada.”

Logo em seguida uma enxurrada de entrevistas sobre educação infantil, reportagens sobre segurança familiar e propaganda de comida para cachorro. – Acharia interessante contar sobre a quantidade de famílias que adotaram um cachorro na semana que se passou, mas isso importaria mais se fosse inesperado. – Como se tudo o que eu quisesse hoje fosse perder a esperança no mundo novamente, aquela pequena caixa de plástico me traz a voz da entrevistada, que diz:

– “É uma irresponsabilidade que crianças façam coisas deste tipo! Elas devem ser punidas!”

Irrompendo por entre os comentários que tomavam o salão, explosões rugiam ao longe: fogos de artifício reluzindo em uma incrivelmente bela combinação de carbono, enxofre e nitrogênio. Os sais voavam em diferentes cores, ofuscados pela luz do dia. Uma criança grita e pula de felicidade ao estridente som que fere a paciência dos mais adultos. Os gritos suprimem meus pensamentos, e antes que todos pudessem voltar à própria consciência ou que a mãe conseguisse sufocar a criança por alguns segundos até que ela parasse, seus gritos se fazem uníssonos com algum outro, assombroso, que surge como um tiro através das janelas de vidro e ressoa nas madeiras perfeitamente polidas.

Todos para fora, há um desastre e devemos saciar nossa vontade pelo humano observando a desgraça alheia.

Em um solavanco, a porta se abre e a vontade de sangue de todos os presentes – ajuizados, racionais, banhados e bem instruídos – se revela em uma anarquia de pés e mãos que se estapeiam para contemplar a tragédia. Curioso reparar no jovem que, de cabeça baixa, fugiu sem pagar a conta.

Senhoras e senhores sejam bem-vindos a esta tragédia contemporânea que chamamos de mundo moderno. A peça de hoje não tem prelúdio, enredo ou fecho de ouro, é apenas uma nota de rodapé do nosso autor que infelizmente não pôde vir contemplar o resultado de seu trabalho nesta manhã.

O show começa.

Há um ponto de ônibus, sangue e um corpo. Uma senhora que chora e uma criança que grita. Há também uma personagem vista única e particularmente pela criança, vestida de preto com um capuz, que aos mais adultos se apresentava no projétil aerodinâmico de chumbo, antimônio, cobre e zinco alojado na cabeça do defunto – que agora escorregava pelo banco do ponto.

– “Olá, pobre criança! A dona morte está de volta! Devo lhe dizer que sinto muito, minha querida, mas estou atrasada. Há outras chamadas no momento e não poderei te contar a verdade. Em alguns anos eu volto, talvez em forma de câncer ou caso você seja estuprada. Aí então você poderá me conhecer a fundo.”

Paramédicos, policiais, repórteres, curiosos e animais. A vida daquela criança nunca mais será a mesma, e quando ela tentar criar o próprio mundo, talvez com a tinta que sobrou da reforma em um quarto na casa dos vizinhos, será cruelmente repreendida por ingenuamente buscar a verdade.

Pobre criança.

Bem, creio não ter me apresentado. Esqueci meu nome há algum tempo, só me recordo dele para receber o pagamento dos clientes. Tenho uma vida comum, uma esposa, sem filhos, sou arquiteto e tenho um gosto obsessivo por arte. Há algum tempo meu psicólogo me recomendou escrever as anedotas que me assombram, pois estava sem conseguir dormir ou me concentrar. Gritar na escuridão vazia para me libertar, parece interessante.

Eu realmente gostaria de uma grande história sobre a qual escrever, mas em sua falta aposto diariamente nas pequenas, dissonantes revoluções individuais do mundo, escrevendo as já mencionadas anedotas de minha paranóia para ninguém além de mim mesmo.

Acredito que deva contar-lhes um pouco sobre minha vida – aproveitando a interrupção – e o porquê de eu estar neste café às sete e cinqüenta da manhã de uma sexta-feira comendo este pão de queijo.

Tive uma infância perturbada, sofrendo em todas as escolas pelas quais passei do que hoje se chama de bullying. Sempre tive dificuldade com mulheres e amigos, não sou a pessoa mais sociável do mundo e acredito que os cursos de retórica, empreendedorismo e leitura dinâmica não ajudaram muito. Em um café como esse em que estou, há alguns anos conheci minha atual esposa e ao casarmos partimos em lua de mel ao sul do país, procurando por neve em solo tupiniquim. Tenho um escritório de arquitetura e consigo assegurar um padrão médio de vida para nós mês após mês. Não teria do que reclamar se não fosse essa constante angústia que me leva a escrever em guardanapos, essa inquieta voz dentro de minha cabeça.

Explicá-la é, de certa forma, complicado. Você passa algum tempo relatando para si mesmo sua visão do mundo exterior e quando se dá conta, ela adquire vida própria. Com o tempo e sua capacidade completamente epistêmica de análise essa visão começa a predizer fatos cada vez mais complexos e te faz acreditar que talvez você tenha a razão sobre todas as coisas. Essa visão se torna o que se chamamos de paranóia.

O que minha paranóia tem a ver com o fato de eu estar sentado neste banco analisando sua perfeita simetria enquanto tomo os últimos goles do melhor café da cidade? Levaria algum tempo pra explicar. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, ao criar sua teoria do aparelho psíquico humano relacionou os níveis de personalidade em Ego, Super Ego e Id. O problema é quando há um quarto elemento, cuja única função é causar a discórdia entre os outros três. Minha mulher não me suporta mais, minha família me evita e os amigos sumiram do mapa. Estou fechando a conta agora pois estou sozinho neste mundo – se não estivesse, provavelmente estaria pedindo outro café.

Neste momento minha mulher deve estar separando minhas coisas e ligando para o advogado para acertar os papéis do divórcio. A paranóia de que tanto falo é um fardo que carrego em troca de proteção contra o mundo, em forma de inúmeras previsões sobre o futuro próximo. Quem sabe se aquele simpático homem andando de bicicleta não pode sacar uma arma e em um ato de descontrole acabar por me matar? Ou se aquelas pessoas rindo não o fazem de mim? Corra.

Viver neste mundo ultramoderno é cada vez mais complexo. A globalização veio como um soco no estômago de quem dizia querer participar de algo maior. Comumente, pessoas gostam de falar que “o feitiço virou contra o feiticeiro”, mas não tenho certeza se todo o complexo sistema social dos tempos de hoje pode ser resumido em um ditado popular. Se você preza por individualidade, originalidade, espaço, esqueça. Há sempre alguém que descobrirá do que você gosta e apresentará isso ao mundo como uma nova forma de cultura.

Boa tarde, soldados. A equipe tática está com alguns problemas e não pôde criar um discurso inspirador, eles estão trabalhando para que eu não vos conte que estão aqui para comprar comida de cachorro. Todos atentos, olhos e ouvidos voltados para mim, soltem seus cafés. Vejam agora, abobados, as imagens em alta definição da vida liberta e feliz de um cachorro, que precisa da comida especial que estamos a te oferecer. Este pode ser o seu cachorro, ou o cachorro da sua filha, ou o cachorro que você irá adotar semana que vem, compre nossa comida de cachorro.

Posso perceber o exato momento em que as palavras saindo de dentro da minha cabeça misturam-se com o pequeno alto-falante da caixa de plástico – que curiosamente ainda prende os espectadores para que seus cafés esfriem. Muito bem, perdi minhas esperanças no mundo hoje. Novamente.

O carro estava lá, onde eu o deixei. Hoje eu acordei mal, penso. Estou atrasado, penso em seguida. No caminho para o trabalho me pergunto onde estarão as grandes aventuras que procuro para minhas histórias e onde estará o brilho da vida que todos aqueles comerciais prometem, que as igrejas pregam e que os governos reservam para as camadas mais altas da sociedade. Pergunto-me onde está o maldito fôlego, a maldita inspiração que todos aqueles artistas têm para compor a incrível massa de cultura que me completa.

Talvez eu precise de comida de cachorro.